Qual história nos contaram? E qual história nos contamos?
No conto A Carta Roubada, de Edgar Allan Poe, o autor nos leva a refletir sobre o quanto nossos julgamentos e ações são guiados pela linguagem que pode não só divergir do real, como também destaca que o que importa não é o real em si, mas a cadeia de significantes que vão formando a história que é contada, tanto para nós mesmos quanto para os outros. O simbolismo da carta e como ela se torna um ponto de manipulação e desejo são questões centrais do conto.
O conto começa com o ministro Sr. D— chantageando a rainha. A carta, roubada pelo ministro, contém informações que ele utiliza para manipulá-la. Não se sabe quais são essas informações, nem quais poderiam ser suas consequências. A rainha, então, oferece uma recompensa à polícia para que recupere a carta. Mesmo sem ter o conteúdo revelado, a carta possui um valor simbólico tanto para a rainha, que gostaria de esconder o conteúdo, quanto para o ministro, que pode usá-la para manipulá-la.
A situação deixa o campo das ideias e se torna uma investigação conduzida pelo delegado da polícia. Nesse ponto, a carta passa a ter também um valor simbólico para ele, não só financeiro, mas intrínseco, pois encontrar a carta define parte de sua competência enquanto profissional e, consequentemente, parte de sua identidade. Esse valor simbólico, no entanto, não se refere ao conteúdo da carta, mas ao que ela representa para cada um dos envolvidos. Da mesma forma, o delegado passa a interpretar o ministro não pelo que ele de fato é, mas pelos significantes que projeta sobre ele. No caso do delegado, seu julgamento equivocado é fruto do deslizamento dos significantes em sua própria cadeia simbólica, que o conduz a enxergar o ministro através de associações reducionistas.
Fica evidente quando o delegado desqualifica o ministro D— como estrategista pelo simples fato de ser poeta. Segundo o delegado: “Todos os poetas são idiotas”, um julgamento refutado por Dupin:
“Este funcionário, porém, se enganou por completo, e a fonte remota de seu fracasso reside na suposição de que o ministro é um idiota, pois adquiriu renome de poeta.”
Essa subestimação do ministro direciona a polícia a seguir um método investigativo formal e minucioso, mas completamente ineficaz. Os policiais limitam-se a protocolos rígidos, partindo do pressuposto de que todos os investigados pensam e agem de forma semelhante. Não consideram, por exemplo, que o ministro poderia esconder a carta em um local tão óbvio que escaparia da lógica convencional.
A grande questão que surge é: por que esses equívocos são tão recorrentes? Isso se deve ao fato de que tendemos a nos basear na nossa própria ideia de realidade e acreditar que ela é compartilhada por todos. Assim, nos colocamos como o ponto de referência de todas as situações, ignorando que cada sujeito possui uma construção única e complexa. Essa singularidade torna impossível compreender completamente a mente do outro. O erro do delegado foi tentar enquadrar a realidade do ministro dentro de julgamentos padronizados, em vez de considerar as particularidades do investigado. Como o delegado mesmo demonstrou ao afirmar:
“Esta é outra de suas estranhas ideias — comentou o delegado, que tinha o costume de chamar ‘estranhas’ todas as coisas que estavam além de sua compreensão e que, desse modo, vivia em meio de uma legião inteira de ‘estranhezas’.”
Esse julgamento se revela, na verdade, um reflexo de sua incapacidade de perceber e compreender a complexidade do outro, tratando-o conforme seus próprios preconceitos e não suas particularidades reais.
Esse erro de julgamento destaca novamente a questão central do conto: qual história nos contamos? Mais do que isso, como essas histórias moldam nossas ações e influenciam o futuro? E podemos observar, com a carta, que não se trata do que ela transporta, mas do valor simbólico que ela tem para cada personagem. Isso se reflete também em como o significante sobre algo ou alguém interfere diretamente nas nossas ações e molda nosso futuro, e não no que aquele algo ou alguém é de fato. Edgar Allan Poe constrói, em A Carta Roubada, um convite à reflexão sobre as bases frágeis dos nossos julgamentos e a força das narrativas que estruturam nossas percepções. Afinal, a linguagem sempre molda os desejos e realidades daqueles que a interpretam.