Dominar, destruir, negar: a colonialidade viva na fala de Trump

A recente declaração de Donald Trump afirmando que os palestinos “não teriam direito de voltar” e que ele “seria o dono” de Gaza escancara uma lógica colonial, necropolítica e racista, sustentada pela desumanização do outro e pela administração econômica da morte. O discurso, disfarçado por uma retórica de reconstrução e segurança, revela, na verdade, uma política de silenciamento étnico e apagamento simbólico do povo palestino, que é excluído de qualquer direito de pertencimento ou retorno à sua própria terra.

Como observa Hannah Arendt em Eichmann em Jerusalém (1999), o mal pode se apresentar de forma banal, “não sendo monstruoso nem demoníaco, mas […] terrivelmente normal” (p. 19). A fala de Trump se encaixa nesse processo de banalização da violência, ao tratar como aceitável e até natural que um território devastado passe a ser reivindicado por quem nada tem a ver com sua história ou pertencimento. A banalidade do mal se revela na normalização do absurdo: os mortos são esquecidos, os sobreviventes ignorados, e a destruição é transformada em oportunidade.

A fala de Trump também expressa o que Frantz Fanon já denunciava em Os condenados da terra (2005): a lógica do colono que divide o mundo em dois — o dos humanos (os colonizadores) e o dos sub-humanos (os colonizados). Segundo Fanon, “o mundo colonial é um mundo compartimentado” (p. 47), onde o colono se coloca como criador da ordem e da vida, e o colonizado como corpo descartável, sem direito à existência plena. Trump fala como quem assume esse lugar do colono, ao dizer que “seria o dono” da Palestina após a devastação. Não há reconhecimento do outro, apenas a apropriação violenta do espaço vazio deixado pela morte.

Para Achille Mbembe, o colonialismo moderno está diretamente ligado à necropolítica, isto é, ao poder de decidir “quem deve viver e quem deve morrer” (Necropolítica, 2018, p. 66). A gestão política da morte substitui a regulação da vida (biopolítica), instaurando um regime em que a destruição em massa não é exceção, mas uma técnica de governo. Trump, ao negar o direito de retorno aos palestinos, transforma a morte em condição de posse: ele só pode imaginar-se “dono” porque os corpos já foram removidos. O território arrasado se torna, em sua fala, um campo sem sujeito pronto para a apropriação.

Além disso, segundo a UNCTAD (2023), Gaza possui grandes reservas de gás e petróleo ainda não exploradas. O interesse de Trump não é humanitário: ele visa transformar Gaza em uma “Riviera do Oriente Médio”, destino de luxo e especulação imobiliária, como já demonstrou em seus negócios com países do Golfo. Essa instrumentalização da destruição se articula com o que Fanon descreve como a “fetichização da posse” do colono: “o colono é aquele que vem tomar o lugar do outro, apagando sua história e sua presença” (Fanon, 2005, p. 92).

A exclusão palestina também opera no plano simbólico: como destaca Arendt, a perda do direito a ter direitos a perda da condição política de existência é uma das formas mais violentas de dominação (Origens do totalitarismo, 1989). A frase de Trump não é só ofensiva; ela representa a negação do direito fundamental à existência enquanto povo, enquanto sujeito político, enquanto ser histórico.

A fala de Trump não pode ser lida como uma simples opinião isolada: ela sintetiza uma lógica que atravessa séculos de dominação colonial, em que o outro é apagado para que o poder do império se reafirme. Ela também atualiza uma racionalidade necropolítica, que transforma o extermínio em justificativa para a posse, a morte em moeda de investimento.

Como alerta Mbembe, “a necropolítica é o estágio final do racismo: aquele que autoriza a segregação em zonas de morte” (2018, p. 76). E, como nos ensina Arendt, o maior perigo do mal moderno é que ele se torne administrável e até aceitável. Trump, nesse sentido, é a personificação banal de um sistema que se alimenta da destruição e chama isso de reconstrução.

Denunciar essas lógicas é recusar a continuidade do colonialismo sob novas máscaras. É lembrar que Gaza não está à venda, e que nenhum “dono” pode se legitimar sobre os escombros de um povo que resiste.

📑 Anexo – Leis Internacionais Violadas ou Desconsideradas pela Fala de Donald Trump sobre Gaza

  1. IV Convenção de Genebra (1949) Protege civis em tempos de guerra, proíbe transferência forçada de população e desapropriação de territórios ocupados. Ao dizer que os palestinos “não têm direito de voltar”, Trump legitima a expulsão forçada e o impedimento de retorno.
  2. Convenção para a Prevenção e Repressão do Crime de Genocídio (1948) Define genocídio como atos destinados a destruir, total ou parcialmente, um grupo nacional, étnico, racial ou religioso. O apagamento simbólico do povo palestino e a negação do direito ao retorno podem configurar apoio indireto ao genocídio.
  3. Carta das Nações Unidas (1945) Princípios de soberania, igualdade entre as nações e autodeterminação dos povos. Trump nega a soberania palestina ao falar como se pudesse “tomar posse” do tterritório.
  4. Declaração Universal dos Direitos Humanos (1948) Garante direitos fundamentais como liberdade, dignidade, nacionalidade, moradia e segurança. A fala de Trump contraria o direito ao retorno, à nacionalidade e ao reconhecimento enquanto povo.
  5. Resolução 194 da ONU (1948) Reconhece o direito dos refugiados palestinos a retornar às suas casas ou a receber compensação. Trump viola diretamente essa resolução ao negar o direito de retorno.
  6. Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos (1966) Reconhece o direito de todos os povos à autodeterminação e ao usufruto de seus recursos naturais. A fala de Trump implica expropriação de recursos e negação da autodeterminação.
  7. Estatuto de Roma do Tribunal Penal Internacional (1998) Define crimes contra a humanidade, incluindo deportação, perseguição, apartheid e outros atos desumanos contra civis. Ao defender uma estrutura de dominação sobre Gaza, Trump potencialmente legitima práticas enquadráveis como crimes.

Seção: Atualidades

Autora: Paula Demarco

 Referências:

  • ARENDT, Hannah. Eichmann em Jerusalém: um relato sobre a banalidade do mal. Companhia das Letras, 1999.
  • ARENDT, Hannah. Origens do totalitarismo. Companhia das Letras, 1989.
  • FANON, Frantz. Os condenados da terra. Civilização Brasileira, 2005.
  • MBEMBE, Achille. Necropolítica. n-1 Edições, 2018.
  • UNCTAD. Report on Assistance to the Palestinian People: Developments in the Economy of the Occupied Palestinian Territory, 2023. (https://unctad.org/publication/preliminary-assessment-economic-impact-destruction-gaza-and-prospects-economic-recovery#anchor_download)
  • G1. Trump diz que palestinos não teriam direito de voltar a Gaza: ‘Eu seria o dono disso’. Globo, 10 fev. 2025. Disponível em: https://g1.globo.com/mundo/noticia/2025/02/10/trump-diz-que-palestinos-nao-teriam-direito-de-voltar-a-gaza-eu-seria-o-dono-disso.ghtml. Acesso em: 26 jun. 2025.